cultura

MINGUITO – ANGOLA Ed. - REBITA – Single 7/45 MONO

 

 depois de ter contraído sarampo, Minguito trouxe, na sua peregrinação para Luanda, a memória do cancioneiro da província do Bengo. Músico versátil e eloquente, Minguito revelava uma acuidade auditiva e táctil, naturalmente potenciada, de forma compensatória, pela a acidental falta de visão. 
Acordeonista de raro talento, viveu tacteando no escuro, procurando a clareza de uma música fortemente enraizada nos desígnios imprevisíveis da cultura popular. Pela gestualidade e entrega romântica ao seu instrumento, diríamos, de forma metafórica, que Minguito tocava batuque no acordeão, seu inseparável instrumento, com o qual mantinha uma íntima afeição e que, por ironia do destino, o acompanhou, vertiginosamente, até à data da sua morte prematura.
Filho de Luís Garcia e de Ana Dias dos Santos, Domingos Luís Garcia, Minguito, casou-se com Catarina Martins, com quem teve sete filhos, e foi influenciado pelos “merengues” do guitarrista e compositor dominicano Luís Kalaff, facilmente identificável na sua música instrumental, “Cantar em tempo de Liberdade”.
Minguito nasceu no dia 5 de Janeiro de 1942, no município do Dande, bairro Kijoão Mendes, na província do Bengo, e experimentou, com sucesso, o acordeão na Música Popular Angolana, um instrumento sobre o qual o processo de assimilação da cultura portuguesa e os marítimos de torna-viagem, terão sido os factores responsáveis pela sua introdução, em Angola, e, acto contínuo, no acompanhamento dos passos da rebita.
Note-se que o acordeão emigrou da música folclórica portuguesa para massemba, também designada, rebita, e desta para o universo da Música Popular Angolana, no período acústico da sua formação, importante momento de abertura e permeabilidade, muito propenso à absorção dos instrumentos de origem ocidental.

O primeiro acordeão

Detentor de uma arte absorvida pela experiência da vida, Minguito recebeu um acordeão, como oferta, das mãos de um militar do Exército colonial português, em 1964, e toda a sua música e experiência artística veio a ser marcada por este instrumento.
Acordeão, harmónica, ou concertina, dais quais faremos, mais adiante, os traços distintivos, a verdade é que Minguito denominava harmónica, denominação italiana e alemã para o mesmo instrumento, ao seu acordeão: “Digam ao povo e aos mais altos dirigentes da nação que se não me apoiarem, pelo menos em alimentação e medicamentos, vou morrer muito cedo. Porque com a inflamação dos pés, já não consigo desenrascar nos mercados. Façam-lhes saber também que até a própria harmónica, que a LAC me deu, já está a falhar...”, lamentava Minguito nos derradeiros dias da sua vida, num texto publicado na edição do dia 4 Fevereiro de 1995, do Jornal de Angola.

Primeira apresentação pública

A primeira apresentação pública do Minguito foi numa sessão musical do “Dia do Trabalhador”, no emblemático Ngola Cine, em 1967. A pose com o acordeão e a crónica invisualidade conferiam ao Minguito uma personalidade artística singular, que o fazia distinguir dos demais artistas, numa época em que o uso do acordeão e da concertina estavam circunscritos à  “Garda e seu Conjunto”, às figuras emblemáticas da rebita, Carola, Fançony e Firmino, que tocavam concertina, e à música folclórica portuguesa.
O único texto crítico, marcadamente poético, que conhecemos, sobre a música de Minguito, em que é visível a emoção do seu autor, J. Diangola, diz o seguinte: “ Minguito rasga a sanfona, designação brasileira do acordeão, para enchê-la com o ritmo dos bongós e da dikanza até soltar a alegria que lhe escorre da alma. Passado e presente confundem-se numa linguagem plena de simbolismo. Celebra-se a independência e claros horizontes iluminam-se para o povo. Entusiasmados, de novo se abrem os braços de Minguito, puxando o acordeão ao ritmo envolvente dos meandros da cobra. As guitarras criam a atmosfera de festa. A cobra entra no turbilhão da dança e executa um bailado fantástico que atinge o clímax no momento da alienação. A sanfona cumpre-se num silvo penetrante. É a serpente traiçoeira que investe. São as palavras que lhe cortam o gesto. Quando a cobra ataca a primeira vez devemos batê-la, quando ataca a segunda vez, devemos matá-la. O ritmo alucinante, depressa faz esquecer o incidente. A África renova-se no segredo das experiências vividas. A música é o veneno. As palavras, o aviso sibilino das grandes sabedorias dos mais velhos”.

A génese das canções

Narrativas sobre a sua cegueira, as moças, a fama e a cidade de Luanda, que o acolheu em 1966, foram os motivos de inspiração textual de uma parte substancial das suas canções. “Ngui mona ni kima”, “Várias moças de Luanda”, “Pequenas que se encostam” e “A fama de Minguito- gravadas ao longo de 1969- indiciam o encontro do cantor com os hábitos de uma cidade que crescia, com fortes ventos de uma cultura europeizada, na razão inversa das tradições e costumes do Dande, sua terra natal. Minguito foi revelando, de 1970 a 1980,  uma prolífera produtividade discográfica, com singles gravados, maioritariamente, com a etiqueta “Rebita”,“Ngoma” e “CDA”. Durante este período, gravou, com o trio “Os Três Jovens”, “Mamã muxima”, “Minguito na harmónica, “Minguito em Angola”, “A fama de Minguito”, “Se lhe falei”, “Merengue puxa comigo”, “Santa Ana” e “Os três jovens”.
Com o conjunto os Kiezos registou “Várias moças de Luanda”, “Ngui mona mi kima”, “Arrancando o capim”, “Merengue escorrega só”, “Bangú Muna ditari” e “Eme ngo kofele”, gravando, nos derradeiros anos da sua carreira, com  o conjunto os Merengues, de Carlitos Vieira Dias, as canções “Ngi kalakala mivu ioso” ,“Pensando conforme o tempo”, “Kwanza” e “Cantar em tempo de Liberdade”.

Periodização da carreira

Quatro períodos marcaram a carreira de Minguito. De 1967, ano da sua apoteótica estreia no Ngola Cine, até 1970, faz uma carreira a solo marcada por canções que acusam uma forte influência do cancioneiro popular do Bengo, gravando, depois, com o agrupamento “África Ritmos”, duas das suas primeiras canções: “Minguito meu amor” e “Há inveja no mundo”.
O segundo período, que começa, em 1970, com a fundação do trio "Os Três Jovens", formado por João Dias (percussão) e Mano Picas (dikanza), ficou marcado pelas canções “Minguito em Angola”,“Minguito na Harmónica” e “Os três jovens”, a última uma canção que enaltece o valor do seu próprio trio.
No terceiro período, que abrange os anos 1970 e vai até 75, Minguito não deixa de enaltecer, de forma insistente, a sua própria figura, numa atitude claramente narcísica, e grava, com o conjunto os Kiezos, “Ngandala ku nganhala ò fuma”, “Várias moças de Luanda”, “Ngui mona mi kima”, “Bangú Muna Ditari” e “Eme ngó Kofele”.
O quarto período, do declínio e morte, que vai de 1975 até aos anos 1980, Minguito opta por canções de forte pendor interventivo e regista, com o conjunto “Merengues”, de Carlitos Vieira Dias, as canções “Ngi kalakala mivu ioso”, “Pensando Conforme o Tempo”, “Quinze dias na RDA”e “Kwanza”, na última das quais celebra a troca da moeda colonial, o escudo, pelo kwanza, a moeda da independência.
Minguito talvez tenha morrido pela “cegueira” dos que teimaram em não reconhecer, no tempo certo, o alcance estético e a notabilidade da sua arte. De lamento em lamento, veio a falecer no dia 28 de Junho de 1995, numa triste e melancólica quarta-feira, na mais deplorável e incompreensível indigência. Viveu os últimos anos da sua vida, tocando na rua, para sobreviver. Era uma figura residente no mercado dos Congolenses, em Luanda.

Acordeão concertina e sanfona

Pelas designações que os instrumentos foram adquirindo, no encontro com várias culturas, julgamos importante esclarecer algumas definições técnicas que distinguem o acordeão, a concertina e a sanfona.
O acordeão é um instrumento de fole e teclado, provavelmente criado na Alemanha, em 1822, e foi introduzido na música como uma espécie de órgão portátil.
Por sua vez, a concertina possui um único fole e utiliza um sistema de palhetas metálicas internas para produzir os sons, um teclado, como o do piano na mão direita, e outro de botões para o acompanhamento dos baixos, na mão esquerda.
A concertina, conforme o fabrico, pode emitir sons diferentes, quando o fole é comprimido ou destemido, trata-se da concertina alemã, ou iguais, independentemente da direcção em que o fole é movimentado, é o caso da concertina inglesa. Carlitos Vieira Dias afirma, de forma resoluta, que o Minguito tocava concertina.
Por último, a sanfona, também conhecida por concertina, gaita ou acordeão, é um instrumento de sopro cujo som é controlado por registos e foi introduzido na Europa no século XVIII, vindo da China. A sanfona é dotada de um fole que acciona as palhetas por meio de um teclado. No Brasil, onde chegou no século XIX, faz parte dos conjuntos de xaxado, forró e baião.

A homenagem

Minguito foi homenageado no dia 30 de Julho de 2006, na 51ª edição do Caldo do Poeira, programa de valorização dos históricos da música angolana, da Rádio Nacional de Angola, num acto realizado no Centro Recreativo e Cultural Kilamba, em Luanda. Renderam homenagem ao acordeonista, que interpretaram, na ocasião, os seus grandes sucessos, os cantores Don Caetano, Yuri da Cunha, Paulo Pacas, Pakito, Zé Manico e Minguito Filho.
A propósito da homenagem saiu a público, o duplo CD “Memórias de Minguito”, com 30 canções, uma colectânea que consideramos abrangente e inequivocamente representativa dos grandes momentos musicais da carreira do Minguito.